A Associação de Empresas de Vinho do Porto (AEVP) sente-se lesada pela lei que restaura a Casa do Douro enquanto instituição pública de inscrição obrigatória e "tudo fará no sentido de suscitar a inconstitucionalidade" do diploma, inclusive "recorrer aos meios judiciais" ao seu dispor para defender "direitos e garantias" de "viticultores, empresas agrícolas e empresas comerciais".
Falhadas as démarches junto das "forças políticas que votaram contra [o diploma] ou se abstiveram" — PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega —, no sentido de conseguir que estas pedissem ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização abstracta sucessiva da Lei n.º 28/2024, de 28 de Fevereiro, a AEVP está "disposta" a ir para a justiça para o conseguir, concretizou, esta quarta-feira, Isabel Marrana, directora-executiva da associação que representa o comércio de vinho do Porto no Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto [IVDP].
O diploma, criticado por vozes dos mais diferentes quadrantes, da esquerda à direita, e inclusive pelo Presidente da República, que o promulgou apesar de ter "dúvidas", criará um desequilíbrio de poder entre produção e comércio na região demarcada, defende a AEVP. E, entre aqueles que a associação contactou, houve quem achasse que "fazia sentido" recorrer ao Constitucional, mas, com as eleições autárquicas à porta, esse interesse terá esmorecido.
A avançar para a justiça, onde teriam primeiro de recorrer a um tribunal comum, a AEVP — que tem como associadas 29 empresas que representam 62% da comercialização de vinhos da região e 79% no caso do vinho do Porto —, só o fará depois de a Casa do Douro ter órgãos sociais constituídos, o que deverá acontecer até ao final do mês de Janeiro.
As eleições para a Casa do Douro decorreram a 21 de Dezembro. Rui Paredes, membro da Adega Cooperativa de Favaios, foi eleito presidente da direcção, enquanto para o Conselho Regional de Viticultores venceu a candidata que encabeçava a outra lista, Manuela Alves. Ainda falta conhecer os nomes dos 51 conselheiros deste segundo órgão, aquele que delibera, e só depois de esses elementos tomarem posse é que será empossada a direcção.
A lei é omissa em relação à data em que a região deve retomar a inscrição obrigatória dos viticultores, um dos aspectos mais sensíveis do diploma e uma das "inúmeras inconstitucionalidades" apontadas pelo jurista Vital Moreira num parecer "demolidor" encomendado em 2024 pela AEVP e que esta associação remeteu às entidades que podiam pedir directamente ao TC o controlo abstracto sucessivo da lei. A saber, o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro, o provedor de justiça, o procurador-geral da República e os deputados à Assembleia da República (pelo menos 1/10 dos parlamentares). Ninguém respondeu positivamente ao repto da AEVP.
"Esta lei fere de morte a paridade do Conselho Interprofissional", sintetizou António Marquez Filipe, o presidente da AEVP, que recorreu à famosa fábula de Hans Christian Andersen para sublinhar que o retrocesso é de tal forma claro que não se entende que a alteração da configuração institucional do sector tenha avançado. "Em matéria de estatuto da Casa do Douro, o rei vai nu. Só quem não quer é que não vê."
Por isso, a determinação em conseguir que o que TC aprecie o diploma é tal que os responsáveis da AEVP estão preparados para a eventualidade de tal batalha legal se arrastar no tempo. "Se demorar anos, demora. Não há problema. Demore seis meses ou seis anos, iremos ponderar sobre os mecanismos que nos permitam tornar mais expedita uma decisão", afirmou aos jornalistas António Marquez Filipe.
O que está em causa
"A legislação aprovada pelo PS, PCP, BE, Livre e PAN, no último dia da [anterior] legislatura (...) viola o livre associativismo, fazendo regressar a Casa do Douro a um modelo corporativista", "inconsistente com o enquadramento sociopolítico da União Europeia", não sendo nem "um factor de promoção de união" na região "nem de melhoria do diálogo entre as distintas partes da produção", detalha a AEVP num documento entregue à imprensa presente no encontro desta quarta-feira.
No mesmo dossiê, explica-se que "ao atribuir funções públicas de fiscalização e de gestão do ficheiro vitivinícola [o chamado cadastro de vinhas] à produção, uma das profissões representadas no Conselho Interprofissional, a lei irá comprometer o equilíbrio, a paridade e a imparcialidade" do órgão consultivo do IVDP, "comprometendo irremediavelmente o seu funcionamento e a gestão interprofissional do sector".
Também é apontado o dedo à "muito exaustiva lista de atribuições concedidas à Casa do Douro". "Não poderemos nunca ter equilíbrio, nem garantia de imparcial funcionamento se uma das profissões detém as funções regulatórias de registo a actualização das parcelas de vinha, distribuição dos quantitativos de vinho a beneficiar e recolha e validação das declarações de colheita e produção", pode ler-se no documento da AEVP, que não vê qualquer "ganho real" no regresso daquela instituição.
Mais promoção, menos vinha
Neste início de novo ano, a associação que representa o comércio do generoso partilhou outros desígnios. Entende ser prioritário aumentar "o valor acrescentado retido" pelos vinhos do Douro e Porto, para que a região possa "remunerar melhor todas as fases do processo produtivo". No dossiê entregue aos jornalistas, afirma que para isso continuará "a apostar na promoção" e a trabalhar no "incremento da procura".
Continuará a lutar pela inclusão do vinho do Porto nas acções de promoção da ViniPortugal — recorde-se que o Porto é o único vinho nacional cuja promoção está arredada da missão da entidade gestora da marca "Wines of Portugal". A esse propósito, e explicando estar para já "fazer caminho" para consegui-lo, a AEVP anunciou uma novidade, que de momento carece de efeitos práticos: passou a ser associada da ViniPortugal.
Ao nível da gestão da oferta, a AEVP propõe o "abandono parcial voluntário" da actividade, nuns casos, e o "abandono total voluntário" com a criação de uma "bolsa de direitos" de plantação, noutros. A primeira medida permitiria aos viticultores "arrancar até 40% da sua área de vinha com direito a vinho do Porto, mantendo o direito à atribuição da DOP [Denominação de Origem Protegida] Porto correspondente à parcela original, a produzir nos 60% de área remanescente". Um mecanismo semelhante ao previsto no n.º 1 do artigo 9.º do DL 173/2009, para a reestruturação da vinha, explicam os seus responsáveis, que poderia "ser decidido pelo Conselho Interprofissional" do IVDP "e não necessita de recursos" para ser implementado.
O objectivo é "diminuir a produção de DOC Douro", bem como os custos para quem produz a uva, e aumentar a rendibilidade dos viticultores. Nos terrenos onde a vinha venha a ser arrancada, propõe-se a "renaturalização" dessas áreas, deitando mão a mecanismos de apoio à plantação de outras culturas menos exigentes ou à criação de galerias ripícolas.
O abandono total voluntário permitiria a quem o quisesse fazer arrancar "a totalidade da sua área de vinha apta à produção de vinho do Porto" e colocar "os respectivos direitos numa bolsa de direitos do IVDP", para serem adquiridos por quem os quisesse exercer em vinhas "de letra igual ou superior", aumentando assim "o respectivo coeficiente de distribuição do mosto generoso". "Os viticultores adquirentes, só poderão beneficiar de 60% da área adquirida e não poderão ultrapassar o coeficiente de distribuição de benefício de 1,6", lê-se na proposta, que a AEVP já fez em sede de Interprofissional e fez chegar à tutela.
Esta segunda medida permitiria que quem já quisesse abandonar a actividade fosse remunerado pelos direitos de plantação, ao mesmo tempo que se diminuiria o potencial produtivo do vinho tranquilo na região, argumenta a AEVP.
Um e outro mecanismos teriam de "ter um prazo e um tecto [financeiro]" e teriam de ser "irreversíveis". A AEVP estima que, anualmente, se produzem 50 mil pipas de vinho em excesso no Douro. Olhando ao rendimento máximo por hectare permitido actualmente, seria preciso arrancar 5.000 hectares de vinha na região para acabar com esse excedente, afirma. Se um hectare valesse 10.000 euros, isso significaria um custo para a região de 50 milhões de euros. Mesmo para um reajuste entre oferta e procura que leve três a cinco anos, como estimam os representantes do comércio, é muito dinheiro.
O IVDP geriria essa bolsa. Isso, num cenário em que continue a existir o instituto público. Já que a Associação de Empresas de Vinho do Porto continua a defender "a privatização do IVDP", ou seja, a sua "transformação numa entidade privada similar às comissões vitivinícolas regionais [CVR] existentes nas restantes regiões nacionais".
Destilar excedentes de vinho da região para beneficiar os mostos aptos a vinho do Porto não é solução para a crise do Douro, voltou a dizer a AEVP, sublinhando que a adequação da oferta à procura "não pode mesmo ser suportada pelo vinho do Porto", cujas vendas se encontram "num momento crítico". A associação prevê que, uma vez fechadas as contas de 2024, o sector venha a constatar que as vendas de vinho do Porto caíram 1,1% em valor, para 362 milhões de euros, e 2,4% em volume (64 milhões de litros). Nas exportações de vinho do Porto também houve um decréscimo, de 2,1% em valor (para 283 milhões de euros) e de 3% em volume (para 12,6 milhões de litros).
Mais um degrau numa queda que não é de agora. "Nos últimos 24 anos, o sector perdeu 31% em volume." Um mergulho que foi sendo compensado pelo crescimento das categorias especiais, Portos que "infelizmente, este ano, também caíram", notou António Marquez Filipe.