Os censores do Estado Novo eram ridículos e viam "pornografia", "atentados à moralidade" e "inconveniências políticas" a cada esquina e em cada frase.

É uma banalidade que todos sabemos.

Triste é verificar que os censores modernos não aprenderam nada de nada com as ditaduras.

Não usam fato e gravata, não escrevem notas à mão nas margens das provas de jornal e nas entradas dos livros, nem peculiares relatórios em máquinas de escrever – só o nome "máquina de escrever" remete para outra vida –, mas repetem as mesmas asneiras e caem nas mesmas armadilhas.

Não conhecem os censores modernos o velho ditado "o fruto proibido é o mais apetecido"? É sempre assim e nada indica que vá mudar. 

No caso, o fruto foi um cartoon.

É triste dizer isto, mas o Washington Post acabou mal 2024 e começa 2025 pior. Rejeitou a publicação de um cartoon que critica o proprietário do jornal, Jeff Bezos, e o que aconteceu? Cronistas de vários jornais estão a desenhar cartoons ainda mais críticos e mais dramáticos sobre o dono do Post.

Esperariam eles outra coisa?

Ann Telnaes não começou ontem e é considerada excelente. Foi cartoonista do Washington Post durante 16 anos, ganhou o Prémio Pulitzer em 2001 pelos seus cartoons, o Reuben da National Cartoonists Society para Cartoonista Excepcional do Ano em 2016 e o Prémio Herblock para cartoons em 2023. Em 2022, foi finalista do Pulitzer pelas suas reportagens ilustradas e desenhos animados.

Era evidente que rejeitar um cartoon de Telnaes seria um acontecimento. A desenhadora diz que é normal editores sugerirem mudanças por diversas razões, "mas até agora nunca tinham rejeitado um cartoon por causa do que ou de quem eu escolho como alvo da minha caneta". Escreveu no Substack: "Pela primeira vez, o meu editor impediu-me de fazer trabalho crítico. Por isso, decidi deixar o Post."

David Shipley, o editor que tomou a decisão, disse à Newsweek: "Respeito Ann Telnaes e tudo o que ela deu ao Post, mas tenho de discordar da sua interpretação dos acontecimentos. Nem todas as decisões editoriais são reflexo de uma força maligna. A minha decisão foi orientada pelo facto de termos acabado de publicar uma coluna sobre o mesmo tema da caricatura e de já termos agendada a publicação de outra coluna esta, uma sátira. O único viés era contra a repetição."

Fico à espera dessa outra coluna sobre o mesmo tema. Não ponho em causa as palavras de Shipley ​– nenhum editor gosta de repetição. Mas há semanas em que parece que escrevemos e desenhamos e fotografamos todos as mesmas coisas. Benjamin Netanyahu, Donald Trump, Assad, Greta Thunberg, o que seja. E há temas que estão sempre actuais.

Mas sobretudo fico a pensar como é que Shipley tomou esta decisão depois de, em Outubro, a 12 dias das eleições presidenciais americanas, o Washington Post ter anunciado que não apoiaria nenhum candidato, quebrando uma tradição de 50 anos, e tendo sido muito criticada a interferência de Bezos numa questão importante como esta. O gesto provocou a demissão de três membros do gabinete editorial do Post e de dois colunistas e foi considerada um "erro terrível" por 11 cronistas.

A decisão de rejeitar o cartoon de Telnaes, mesmo que tecnicamente defensável, não pode ser desligada deste contexto. Está o Post, que tem como lema "a democracia morre na escuridão", a ceder à pressão do seu dono?

Como é óbvio, por causa disto, já todos vimos o cartoon rejeitado. Mark Zuckerberg, director executivo da Meta; Sam Altman, director executivo da OpenAI; Patrick Soon-Shiong, proprietário do Los Angelos Times, e Bezos, todos bilionários, e o Rato Mickey, representante da Disney, estão ajoelhados perante uma estátua de Trump, a oferecer-lhe sacos de dinheiro.

O desenho não só teve mais leitores do que se tivesse sido publicado, como está a provocar uma onda de solidariedade divertida e incómoda. Telnaes está a receber cartoons sobre o mesmo tema e a juntá-los nas suas redes sociais e um jornal de Alabama acaba de lançar um apelo para que todos os cartoonistas desenhem as suas versões do cartoon inacabado e as publiquem com a hashtag #WeStandWithAnn

P.S. – Sendo Livre de Estilo uma newsletter sobre jornalismo, é irresistível reproduzir o título e texto de capa do l'Humanité, o Avante! francêssobre a morte de Jean-Marie Le PenO ódio era o seu ofício, seguido de: "O fundador da Frente Nacional morreu. Racista, anti-semita, anticomunista, consagrou a sua vida à reabilitação de uma extrema-direita desqualificada pelo seu passado colaboracionista. As suas ideias pestilentas sobreviveram-lhe."

Os censores modernos não aprenderam nada

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