Um quarto dos animais de água doce está em alto risco de extinção
Estudo da Nature analisou 23 mil espécies que habitam ecossistemas de água doce e conclui que 24% estão em risco de extinção. Poluição, barragens e espécies invasoras estão entre as ameaças.
Cerca de um quarto dos animais de água doce encontra-se em alto risco de extinção, revela uma nova análise “pormenorizada” que considerou 23.496 espécies que habitam rios, lagoas e outras zonas húmidas da Terra. O estudo publicado nesta quarta-feira na revista Nature identificou também as principais ameaças, que vão da agricultura à poluição, passando pelas barragens fluviais e por espécies invasoras.
“A mensagem principal é que precisamos de agir agora para evitar novos declínios e extinções. Embora as regiões prioritárias globais identificadas para as espécies de tetrápodes (anfíbios, aves, mamíferos e répteis) sejam também áreas prioritárias para a fauna de água doce, são necessárias acções de conservação específicas para as espécies de água doce, dadas as suas necessidades particulares em termos de habitat e as diferentes ameaças”, explica ao PÚBLICO Catherine Sayer, primeira autora do estudo, investigadora da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
No artigo da revista Nature, os cientistas apresentam os resultados da avaliação global da fauna de água doce para a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN, incluindo milhares de peixes, crustáceos decápodes (grupo que engloba caranguejos, lagostins e camarões) e odonatos (ordem que abrange as libélulas e as libelinhas).
A análise indica que 24% das espécies consideradas se encontra em risco elevado de extinção, com cerca de 90 já confirmadas como extintas. De todos os animais estudados, os decápodes (ou seja, crustáceos com dez patinhas locomotoras) têm a maior percentagem de espécies ameaçadas (30%), quase o dobro do valor apresentado pelos odonatos (16%). Os peixes de água doce figuram com uma percentagem ligeiramente menor que a ordem de crustáceos estudada: 26%.
Listas vermelhas
Cada avaliação da Lista Vermelha contém informações sobre a distribuição, a população, os habitats, as ameaças e as acções de investigação ou conservação relevantes para a espécie, explica Catherine Sayer, bem como uma categoria que indica o risco de extinção, atribuído com base na aplicação de critérios quantitativos aos dados da espécie.
“Repetir esse esforço para cada espécie é um processo que exige muito tempo e recursos. A conclusão desta avaliação exigiu mais de 20 anos e o trabalho de mais de mil cientistas. Este período de duas décadas representou um desafio em si mesmo, uma vez que é necessário garantir que as avaliações do início e do fim do período foram efectuadas de forma consistente, mas felizmente a Lista Vermelha da IUCN está bem estabelecida com categorias e critérios estáveis”, explica Catherine Sayer.
Além deste trabalho meticuloso, os cientistas enfrentaram outro desafio: o número de espécies está sempre a aumentar à medida que novos animais são descobertos e descritos cientificamente. “Por isso, há um certo número de espécies em falta no nosso conjunto de dados, mas este continua a fornecer uma imagem abrangente do estado dos grupos taxonómicos investigados”, assegura a investigadora.
Principais ameaças
A poluição parece liderar os riscos mais prevalentes, afectando mais de metade das mais de 23 mil espécies estudadas (54%). A seguir vêm as barragens e a extracção de água (39%), que fragmentam os rios e perturbam os habitats, e as transformações na forma como o solo é ocupado (37%), ameaça que se traduz sobretudo nas consequências da actividade agrícola, que pode arrastar excesso de nutrientes para as massas de água. Já as doenças e as espécies invasoras constituem um risco para 28% dos animais considerados na análise.
“Esperamos que este conjunto de dados globais da Lista Vermelha da IUCN para a água doce, bem como as recomendações desta análise sejam integradas em acções de conservação e gestão baseadas em evidências e em medidas políticas desde a escala local à global para ajudar a inverter a curva da perda de biodiversidade de água doce”, lê-se na conclusão do estudo.
Os cientistas debruçaram-se não só sobre os lagos e os rios, mas também outras zonas húmidas interiores naturais, como turfeiras, pântanos, sapais e charcos. Estima-se que perdemos 35% da área húmida à superfície da Terra entre 1970 e 2015, e a um ritmo três vezes mais rápido do que o das florestas.
Esta perda de habitat constitui uma grave ameaça ao equilíbrio dos ecossistemas de água doce, que acolhem mais de 10% de todas as espécies conhecidas hoje pela ciência. A progressiva perda de biodiversidade nessas zonas húmidas pode pôr em risco funções ecológicas desempenhadas pelos diferentes animais, sublinham os autores, que vão desde a regulação do ciclo de nutrientes ao controlo de inundações.
Prioridades de conservação
No estudo, os cientistas também realizaram uma análise de substituição em que compararam as distribuições de espécies de tetrápodes ameaçadas (anfíbios, aves, mamíferos e répteis) com as de animais de água doce em risco. O objectivo, explica Catherine Sayer, era avaliar se é mesmo eficaz utilizar dados sobre os tetrápodes para definir as prioridades de conservação da fauna de água doce.
“Ficámos surpreendidos ao constatar que os tetrápodes são bons substitutos, sugerindo que as espécies ameaçadas de ambos os grupos se encontram em locais semelhantes. No entanto, é de notar que não só os habitats utilizados pelos dois grupos, mas também as ameaças mais prevalentes enfrentadas por ambos, são diferentes, pelo que continuam a ser necessárias acções específicas para os animais de água doce”, sublinha Catherine Sayer.
Por outras palavras, explica a investigadora, não podemos partir do princípio de que uma determinada espécie de água doce será protegida por uma medida de conservação criada para um vertebrado terrestre. O estabelecimento de uma reserva para evitar que os caçadores furtivos cheguem aos grandes mamíferos, por exemplo, não vai ajudar um peixe que vive num rio poluído do mesmo parque natural. O que protege um tetrápode não protege necessariamente a fauna de água doce.
“Este artigo salienta que confiar em tetrápodes ou factores abióticos (por exemplo, stress hídrico) não é apropriado quando se tomam decisões de conservação de animais de água doce a escalas locais. Como tal, para melhor definir as políticas de conservação, é importante comunicar os resultados da publicação às partes interessadas relevantes, incluindo os sectores público e privado, os profissionais da conservação a nível local e regional”, conclui Catherine Sayer, numa resposta por escrito.