Urbanização em solos rústicos: retrocesso de décadas, assente em falsos álibis

Carta aberta lançada pela Rede H que, em três dias, foi subscrita por quase 600 especialistas ligados à habitação, ao desenvolvimento urbano e territorial, à floresta, à agricultura e ao ambiente.

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A 30 de Dezembro foi publicada a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, Decreto-Lei n.º 117/2024, promulgada pelo Sr. Presidente da República, que a descreveu como “um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território”.

Não podíamos estar mais de acordo: a possibilidade de reclassificação de solo rústico em urbano nos termos aprovados subverte um sistema de planeamento progressivamente melhorado, contrariando frontalmente os objectivos fundamentais da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio) e os princípios daquele regime jurídico, cujo preâmbulo determina: "Um modelo coerente de ordenamento do território deve assegurar a coesão territorial e a correcta classificação do solo, invertendo-se a tendência, predominante nas últimas décadas, de transformação excessiva e arbitrária do solo rural em solo urbano. Com efeito, pretende-se contrariar a especulação urbanística, o crescimento excessivo dos perímetros urbanos e o aumento incontrolado dos preços do imobiliário, designadamente através da alteração do estatuto jurídico do solo."

O anterior Governo tinha já flexibilizado a reclassificação de solos rústicos em urbanos, invocando, como agora, a falta de terrenos livres para a construção de nova habitação, mas apenas para promoção pública de habitação acessível, em solo contíguo a solo urbano, e desde que fundamentada na Estratégia Local de Habitação ou Carta Municipal de Habitação. Ao abranger todos os terrenos rústicos (públicos ou privados), sem que a totalidade da habitação a construir seja acessível e acolha algumas actividades não residenciais, o actual Governo abre a porta a uma situação radicalmente distinta.

Acresce que as razões invocadas são contrariadas pela realidade. De facto:

  • não existe falta generalizada de solos urbanos nos perímetros urbanos;
  • existem autarquias com graves carências de habitação, que não avançaram com as candidaturas ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) por diferentes motivos;
  • os fundos do PRR destinados à habitação estão contratualizados com as autarquias e entidades beneficiárias elegíveis, não havendo risco de perda de verba por falta de terrenos.

Havendo casos pontuais de falta de solo urbano, importa identificar onde ocorre e qual a dimensão do problema. Ao ignorar a necessidade de tal verificação, o Governo dispensa-se de justificar a sua proposta e dá azo à crença do Sr. Presidente da República quanto à “urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção de habitação”.

É consensual que a crise da habitação constitui um problema grave e de resolução urgente. Contudo, a conversão de solos rústicos em urbanos não contribuirá para a sua resolução. E prejudicará, sobremaneira, a agricultura, a floresta e o ambiente, potenciando a ocupação urbana de solos integrados na Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Ecológica Nacional, e a fragmentação do solo rústico essencial à nossa segurança alimentar. Além disso, ao criar uma expectativa de valorização dos terrenos rústicos para fins imobiliários, inibirá o seu uso para a actividade produtiva.

O país necessita de políticas de habitação que evitem a proliferação de bairros periféricos onde se concentram famílias de baixos rendimentos e minorias étnicas, os quais favorecem a estigmatização, perpetuam a pobreza e agravam os custos sociais dela decorrentes. Assim, ao contrário do que perspectiva o Decreto-Lei n.º 117/2024, são necessárias políticas de habitação que reduzam a pressão sobre a expansão urbana, contrariem o desordenamento e a segregação e que promovam:

  • maior investimento público na construção de habitação acessível;
  • melhor uso do parque habitacional existente, através da mobilização do património devoluto, regulação do alojamento local, limites à transformação de edifícios habitacionais em hotéis e incentivos fiscais à reabilitação para habitação acessível;
  • o zonamento inclusivo, através da cedência de uma quota de terrenos/fogos em novas operações urbanísticas;
  • a continuidade urbana e optimização das infra-estruturas e equipamentos existentes, através da definição de áreas de construção prioritária e da facilitação dos processos que visem a construção de habitação acessível nessas áreas;
  • a reabilitação urbana, através da facilitação dos licenciamentos e da definição de áreas de intervenção prioritária, criando-se incentivos fiscais e alocando-se recursos públicos para apoio a projectos de habitação acessível nestas áreas;
  • a atribuição de subsídios directos ou linhas de crédito com condições favoráveis para quem pretenda reabilitar imóveis para habitação acessível;
  • a penalização de proprietários que não cumpram a manutenção ou reabilitação de imóveis devolutos em áreas de pressão urbana;
  • a utilização do IMI como desincentivo à especulação, garantindo que a carta de ordenamento dos planos directores municipais serve de base ao cálculo do valor patrimonial tributário;
  • o incentivo à habitação colaborativa (e.g., cohousing) e à experimentação de modelos de parceria público-comunitária de carácter não especulativo;
  • a promoção de soluções modulares e flexíveis para a reabilitação urbana, com vista à adaptação rápida dos edifícios devolutos;
  • a regulação do mercado imobiliário, através de controlo de rendas, limitação de especulação imobiliária e captação de mais-valias urbanísticas, garantindo que as habitações resultantes da reabilitação urbana são destinadas a preços acessíveis;
  • a criação de uma plataforma digital para monitorizar os imóveis devolutos, permitindo um mapeamento detalhado e a implementação de políticas direccionadas;
  • a revisão de normas que penalizam a oferta de habitação acessível, como seja a obrigatoriedade de criar estacionamento no edifício e no espaço público, fazendo depender novos empreendimentos de opções de mobilidade partilhada e sustentável.

Não há que optar, como alguns afirmam, entre habitação e ambiente: a contenção dos limites urbanos é tão fundamental para a qualificação do habitat quanto para a salvaguarda ambiental. É hoje consensual que o desenvolvimento urbano compacto permite mais e melhores opções de transporte, evitando a dependência automóvel e as suas elevadas externalidades sociais e ambientais. Ao garantir deslocações mais curtas, bairros densos e interligados, potenciam o uso do transporte público, o andar a pé e o uso da bicicleta, sendo determinantes para a saúde pública e para o combate às alterações climáticas. Promovem, também, os contactos informais, potenciando bairros com maior sentido de comunidade e uma sociedade mais coesa. Reconhecendo as inequívocas desvantagens da cidade dispersa, a Nova Agenda Urbana (2016) e a Nova Carta de Leipzig (2020), subscritas por Portugal, determinam que as cidades devem ser tão compactas quanto possível, o que reforça a necessidade de construir habitação acessível em zonas já infra-estruturadas, preenchendo os vazios urbanos e evitando a construção de novos empreendimentos isolados em solo rústico.

Esta recomendação é particularmente importante perante os alertas das Nações Unidas quanto ao risco de segurança alimentar, face à acelerada degradação dos solos. Em Portugal, 54% dos terrenos agrícolas já estão degradados e apenas uma pequena parcela apresenta elevado potencial agrícola. O licenciamento de construções em solo rústico aumentará a nossa dependência alimentar, levará à destruição de florestas e à necessidade de infra-estruturas adicionais, agravando o impacto ambiental. Penalizará, além disso, o já frágil orçamento das famílias e aumentará os custos públicos (estima-se que os custos da dispersão – resultantes de redes de infra-estruturas e equipamentos pouco optimizados – cheguem a ser 63% superiores aos da urbanização compacta).

Em suma, esta alteração não ajudará a resolver a crise da habitação e imporá elevados custos sociais, ambientais e económicos para o Estado e para as populações. Face à gravidade do que está em causa, os signatários desta Carta Aberta (que pessoas e colectivos ainda podem subscrever) apelam ao Governo para que reveja a sua posição e aos deputados para que da apreciação parlamentar do referido decreto-lei resulte a efectiva salvaguarda do interesse público.

Esta carta foi redigida por André Carmo, Demétrio Alves, Helena Roseta, José Carlos Guinote, Luís Mendes, Pedro Bingre do Amaral, Rita Castel’Branco, Sara Brysch e Sílvia Jorge, no seguimento do comunicado emitido pela Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação.

Subscrevem esta Carta Aberta quase 600 especialistas nas áreas da arquitectura, habitação, desenvolvimento urbano, território, floresta, agricultura e ambiente, incluindo muitos professores universitários e investigadores. A lista pode ser consultada aqui.