E se, de repente, as mulheres se recusassem a fazer o trabalho não pago? “O país parava”

Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade defende alteração no Código Civil para garantir direito das mulheres a serem indemnizadas pelo trabalho doméstico e de cuidados aos dependentes

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Mesmo quando vivem com um cônjuge, são maioritariamente as mulheres quem prepara as refeições (65%) e quem lava e cuida da roupa (77,8%) Manuel Roberto (arquivo)
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Se dúvidas houvesse quanto à elevadíssima feminização do trabalho doméstico e de cuidados (aos filhos, idosos e dependentes), o novo boletim estatístico sobre igualdade de género em Portugal desfá-las-ia num abrir e fechar de olhos: entre a população inactiva, a categoria de pessoas domésticas era em 97% representada por mulheres em 2023.

Sem surpresas, mesmo nos casos em que vivem com um cônjuge ou companheiro, continuam a ser elas quem assume o encargo de vestir os filhos pequenos (em 65% dos casos) ou verificar se estão apropriadamente vestidos, de os levar ao médico (55,6%) e à creche ou à escola, de controlar as horas de dormir e de ficar em casa quando estes adoecem (63,7%). Do mesmo modo, são maioritariamente as mulheres quem prepara as refeições (65%) e quem lava e cuida da roupa (77,8%), entre outras tarefas não pagas.

O que aconteceria se, de repente, deixassem de conciliar todo este trabalho não pago com a profissão e se recusassem a fazê-lo? “O país parava, a sociedade parava”, responde, lapidar, Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG). “Estamos a falar de um trabalho que não acaba e, se tivesse expressão financeira, reconhecer-se-ia o quanto poupa o Estado, o quanto poupam as famílias.”

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Não são contas difíceis de se fazer: no estudo intitulado “O valor do trabalho não pago de mulheres e homens – trabalho de cuidado e tarefas domésticas”, financiado pelo mecanismo financeiro EEA Grants e desenvolvido, entre 2020 e 2022, por uma equipa do Cesis – Centro de Estudos para a Intervenção Social, calculava-se que o Produto Interno Bruto (PIB) nacional aumentaria quase 80 mil milhões de euros, se este trabalho fosse incluído. O que os autores Heloísa Perista e Pedro Perista fizeram foi, a partir do ganho médio mensal dos portugueses, atribuir um valor monetário a um conjunto variado de tarefas, como ajudar uma pessoa acamada a comer ou a lavar-se, a passar a roupa a ferro e cuidar dos filhos, entre outras. E, tendo como referência 2019, ano em que o PIB era de 212,3 mil milhões de euros, segundo o INE, concluíram que a inclusão daquele trabalho nas contas nacionais faria o PIB subir para cerca de 292 mil milhões de euros.

“É dinheiro que as mulheres deixam de ganhar ou dão de graça”, enfatiza Sandra Ribeiro, para quem é urgente fazer uma alteração no Código Civil capaz de assegurar que, no momento de separação ou divórcio, haja lugar ao pagamento de uma indemnização à pessoa que tenha assumido tais responsabilidades. “É uma das recomendações de que vamos dar conhecimento à tutela, nomeadamente à ministra da Justiça”, adiantou, para precisar que os cálculos que vierem a ser feitos deverão, nos termos da mesma recomendação, ter por base o salário médio e não o mínimo. “Acho que um dia essa alteração vai ter de acontecer, sobretudo atendendo à nova economia do cuidado em que estamos a entrar, com o envelhecimento da população”, preconiza.

Em 2021, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a condenação de um homem ao pagamento de mais de 60 mil euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico e de cuidado dos filhos que esta tinha desenvolvido ao longo dos quase 30 anos de união de facto. “O outro lado tinha argumentado que tal trabalho correspondia ao seu dever natural, enquanto mulher e mãe, e esta decisão veio dizer que não, que não existe tal dever”, recorda Sandra Ribeiro.

Para a presidente da CIG, esta sentença veio “dar uma ideia do valor efectivo deste trabalho que é sempre altamente desconsiderado e secundarizado”. O reconhecimento do seu valor no Código Civil contribuiria para “aliviar um bocadinho a situação de dependência económica e de potencial pobreza” que ameaça muitas mulheres, defende. “É uma forma de dar visibilidade a este género de trabalho, que hoje é considerado como zero e que, na verdade, vale milhões, inclusivamente para o Estado”, insiste, para deixar uma outra recomendação: a criação de uma conta satélite do trabalho doméstico não pago “para se perceber qual é exactamente o seu valor”.

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