Os telhados e jardins estão cobertos de neve e, sim, faz bastante frio lá fora (-13ºC esta manhã). Cá dentro, neste cantinho do Vermont, estão quase 20ºC graças ao aquecimento central e ao bom isolamento térmico, um conceito que um dia gostava de poder ensinar aos construtores civis portugueses. O caos dos nevões que aparece nas notícias acontece mais para sul, onde estão menos habituados a invernos tão rigorosos, como na capital Washington DC. 

Ao computador, divido-me entre este texto, a rádio WBGO (a última rádio de jazz da grande Nova Iorque, a emitir a partir de Newark) e a televisão canadiana. É que a meia hora daqui, do outro lado da fronteira, há um país em ebulição com o culminar da sua crise política. Justin Trudeau anunciou a sua demissão após quase uma década no poder, quase uma década também depois dos píncaros da sua popularidade, entretanto soterrada pelo peso da inflação e da gravíssima crise da habitação no Canadá, bem como por alguns escândalos éticos.

Deste lado da fronteira, é um dia normal. Mas isso não é normal. Há quatro anos, a 6 de Janeiro de 2021, uma multidão de apoiantes violentos de Donald Trump invadiu o Capitólio para tentar travar o processo de certificação dos resultados das presidenciais de Novembro de 2020. Trump perdeu, Joe Biden ganhou, e nenhum dos cerca de 50 tribunais que analisaram as queixas de fraude eleitoral alegadas pelo candidato republicano derrotado encontrou qualquer indício que lhes desse suporte. Trump nunca aceitou a derrota, e arrastou os Estados Unidos para a beira de um precipício onde não caíram por muito pouco. 

O ataque de 6 de Janeiro de 2021 é um dos acontecimentos mais bem documentados da história. Até por culpa dos próprios intervenientes, que o filmaram e transmitiram em directo nos seus telemóveis. Também está bem documentado o que se disse na altura e quem o disse. A própria cúpula do Partido Republicano, com Mitch McConnell então a liderar a maioria no Senado, não teve dúvidas de que se assistiu a um assalto à democracia, nem teve dúvidas sobre quem o instigou.

Era difícil imaginar que Donald Trump pudesse ter qualquer futuro político depois daquele dia. Mas eis que se operou um processo de reabilitação de imagem e de reescrita da história com uma profundidade e eficácia que normalmente requerem muitos anos ou muitas purgas.

Quatro anos depois, o mesmo Partido Republicano que parecia prestes a deixar cair Trump vê agora o mortífero ataque ao Capitólio como um legítimo exercício de liberdades civis. 

Inicialmente, ainda se propagaram mentiras, como a suposta participação de agitadores esquerdistas infiltrados, ou uma alegada conspiração das forças de segurança. Agora, nem isso. Os mais de mil indivíduos condenados na justiça pela participação no motim foram entretanto promovidos a mártires políticos e deverão receber um perdão presidencial assim que Trump regresse à Casa Branca, no dia 20. O que os guiou, a crença de que uma eleição democrática tinha sido roubada, é agora um mantra incontestado por qualquer republicano que queira evitar o confronto com o Presidente-eleito. E ameaça-se com prisão quem os investigou e condenou.

Hoje, em Washington, no Capitólio, certifica-se a vitória de Trump, ele mesmo, nas eleições presidenciais de Novembro. Numa paz relativa e gélida, sem acusações de fraude. Como no futebol: se perdemos, fomos roubados; se ganhámos, o mérito é todo nosso.

É extraordinário que tal processo revisionista tenha acontecido numa sociedade democrática e razoavelmente bem informada como a norte-americana, na terceira década do século XXI. Mas aconteceu, e isso é um veredicto pesado sobre as nossas sociedades e esta dita modernidade. 

Os mesmos telemóveis e computadores que nos podiam aproximar da verdade também nos trazem a mentira. Porque há um bom mercado para ela. Há quem a produza muito competentemente. Há quem a deixe passar e lucre com ela (veja-se a transformação do sector tecnológico norte-americano, de antagonista em apoiante de Trump, ou a domesticação de instituições da imprensa como o Washington Post). E há quem a consuma, alegre, acrítica e voluntariamente.

Como olhará a História para o 6 de Janeiro de 2021? Que não nos esqueçamos do seu primeiro rascunho.